quarta-feira, novembro 15, 2006

O DIREITO À PREGUIÇA - Paul Lafargue

INTRODUÇÃO

O Sr. Thiers, no seio da Comissão sobre a Instrução Primária de 1849, dizia: “Quero tornar a influência do clero todo-poderosa, porque conto com ele para propagar esta boa filosofia que ensina ao homem que ele veio a este mundo para sofrer e não aquela outra filosofia que, pelo contrário, diz ao homem: ‘Goza’.” O Sr. Thiers formulava a moral da classe burguesa cujo egoísmo feroz e inteligência estreita encarnou.
A burguesia, quando lutava contra a nobreza, apoiada pelo clero, arvorou o livre exame e o ateísmo; mas, triunfante, mudou de tom e de comportamento e hoje conta apoiar na religião a sua supremacia econômica e política. Nos séculos XV e XVI, tinha alegremente retomado a tradição pagã e glorificava a carne e as suas paixões, que eram reprovadas pelo cristianismo; atualmente, cumulada de bens e de prazeres, renega os ensinamentos dos seus pensadores, os Rabelais, os Diderot, e prega a abstinência aos assalariados. A moral capitalista, lamentável paródia da moral cristã, fulmina com o anátema o corpo trabalhador; toma como ideal reduzir o produtor ao mínimo mais restrito de necessidades, suprimir as suas alegrias e as suas paixões e consumí-lo ao papel de máquina entregando trabalho sem tréguas nem piedade.
Os socialistas revolucionários têm de recomeçar o combate que os filósofos e os panfletários da burguesia já travaram; têm de atacar a moral e as teorias sociais do capitalismo; têm de demolir, nas cabeças da classe chamada à ação, os preconceitos semeados pela classe reinante; têm de proclamar, no rosto dos hipócritas de todas as morais, que a terra deixará de ser o vale de lágrimas do trabalhador: que, na sociedade comunista do futuro que fundaremos “pacificamente se possível, senão violentamente”, as paixões dos homens terão rédea curta, porque “todas são boas pela sua natureza, apenas temos de evitar a sua má utilização e os seus excessos” (1), e só serão evitadas pelo seu mútuo contrabalançar, pelo desenvolvimento harmônico do organismo humano, porque, diz o Dr. Beddoe, “só quando uma raça atinge o seu ponto máximo de desenvolvimento físico é que ela atinge o seu mais elevado nível de energia e de vigor moral”. Era esta também a opinião do grande naturista Charles Darwin (2)
A refutação do direito ao trabalho, que reedito com algumas notas adicionais, foi publicado no semanário L’Egalité de 1880, segunda parte.
Prisão de Sainte-Pélagie, 1883.P. L.
NOTAS:(1) Descartes, As Paixões da Alma.(2) Doutor Beddoe, Memoirs of the Anthropological Society; Ch. Darwin, Descent of man.

I – UM DOGMA DESASTROSO

“Sejamos preguiçosos em tudo, exceto em amar e em beber, exceto em sermos preguiçosos.” LESSING
Uma estranha loucura se apossou das classes operárias das nações onde reina a civilização capitalista. Esta loucura arrasta consigo misérias individuais e sociais que há dois séculos torturam a triste humanidade. Esta loucura é o amor ao trabalho, a paixão moribunda do trabalho, levado até ao esgotamento das forças vitais do indivíduo e da sua progenitora. Em vez de reagir contra esta aberração mental, os padres, os economistas, os moralistas sacrossantificaram o trabalho. Homens cegos e limitados, quiseram ser mais sábios do que o seu Deus; homens fracos e desprezíveis, quiseram reabilitar aquilo que o seu Deus amaldiçoara. Eu, que não confesso ser cristão, economista e moralista, recuso admitir os seus juízos como os do seu Deus; recuso admitir os sermões da sua moral religiosa, econômica, livre-pensadora, face às terríveis conseqüências do trabalho na sociedade capitalista.
Na sociedade capitalista, o trabalho é a causa de toda a degenerescência intelectual, de toda a deformação orgânica. Comparem o puro-sangue das cavalariças de Rothschild, servido por uma criadagem de bímanos, com a pesada besta das quintas normandas que lavra a terra, carrega o estrume, que põe no celeiro a colheita dos cereais. Olhem para o nobre selvagem, que os missionários do comércio e os comerciantes da religião ainda não corromperam com o cristianismo, com a sífilis e o dogma do trabalho, e olhem em seguida para os nossos miseráveis criados de máquinas. Quando, na nossa Europa civilizada, se quer encontrar um traço de beleza nativa do homem, é preciso ir consumí-lo nas nações onde os preconceitos econômicos ainda não desenraizaram o ódio ao trabalho. A Espanha, que infelizmente degenera, ainda se pode gabar de possuir menos fábricas do que nós prisões e casernas; mas o artista regozija-se ao admirar o ousado Andaluz, moreno como as castanhas, direito e flexível como uma haste de aço; e o coração do homem sobressalta-se ao ouvir o mendigo, soberbamente envolvido na sua capa esburacada, chamar amigo aos duques de Ossuna. Para o Espanhol, em cujo país o animal primitivo não está atrofiado, o trabalho é a pior das escravaturas. Os Gregos da grande época também só tinham desprezo pelo trabalho: só aos escravos era permitido trabalhar, o homem livre só conhecia os exercícios físicos e os jogos da inteligência. Também era a época em que se caminhava e se respirava num povo de Aristóteles, de Fídias, de Aristófanes; era a época em que um punhado de bravos esmagava em Maratona as hordas da Ásia que Alexandre ia dentro em breve conquistar. Os filósofos da antigüidade ensinavam o desprezo pelo trabalho, essa degradação do homem livre; os poetas cantavam a preguiça, esse presente dos Deuses: O Meliboe, Deus nobis hoec otia fecit
Cristo pregou a preguiça no seu sermão na montanha:”Contemplai o crescimento dos lírios dos campos, eles não trabalham nem fiam e, todavia, digo-vos, Salomão, em toda a sua glória, não se vestiu com maior brilho.” Jeová, o deus barbudo e rebarbativo, deu aos seus adoradores o exemplo supremo da preguiça ideal; depois de seis dias de trabalho, repousou para a eternidade.
Em contrapartida, quais são as raças para quem o trabalho é uma necessidade orgânica? Os “Auvergnats”; os Escoceses, esses “Auvergnats” das ilhas britânicas; os Galegos, esses “Auvergnats” da Espanha; os Pomeranianos, esses “Auvergnats” da Alemanha; os Chineses, esses “Auvergnats” da Ásia. Na nossa sociedade, quais são as classes que amam o trabalho pelo trabalho? Os camponeses proprietários, os pequeno-burgueses, uns curvados sobre as suas terras, os outros retidos pelo hábito nas suas lojas, mexem-se como a toupeira na sua galeria subterrânea e nunca se endireitam para olhar com vagar para a natureza.
E, no entanto, o proletariado, a grande classe que engloba todos os produtores das nações civilizadas, a classe que, ao emancipar-se, emancipará a humanidade do trabalho servil e fará do animal humano um ser livre, o proletariado, traindo os seus instintos, esquecendo-se da sua missão histórica, deixou-se perverter pelo dogma do trabalho. Rude e terrível foi a sua punição. Todas as misérias individuais e sociais mereceram da sua paixão pelo trabalho.

Paul Lafargue nasceu em Cuba, filho de um francês e de uma judia, neto de uma mulata. Estudou medicina na França e se tornou um apaixonado militante socialista. Em 1868, casou-se com Laura, a filha caçula de Marx.
Seu texto mais conhecido é "O Direito à Preguiça", publicado em Paris, em 1880.
Na época, os trabalhadores nas oficinas parisienses ainda trabalhavam em média 12 ou 13 horas por dia e, às vezes, as jornadas de trabalho se estendiam a 15, 16 e até 17 horas. A essa situação monstruosa ainda se acrescentava a circunstância de muitos operários estarem convencidos de que o trabalho em si mesmo era uma atividade dignificante e benéfica.

Para mais http://www.geocities.com/jneves_2000/lafargue.htm