Fundações Estatais
Segundo esse relatório, até os anos 70, os recursos para os HU’s vinham das Instituições Federais de Ensino Superior (IFES), mas as dificuldades econômicas do Brasil e as crescentes demandas levaram à criação de convênios com o antigo INAMPS – apenas previdenciários eram atendidos – mediados por fundações de apoio.
Essas fundações de apoio são instituições de direito privado, sem fins lucrativos, destinadas a apoiar projetos de ensino, pesquisa e extensão e desenvolvimento institucional e podem ser contratadas sem licitação. Em alguns casos chegou-se a adotar o atendimento de planos de saúde nos HU’s, para obtenção de mais recursos. Ainda de acordo com o relatório do GT, a partir dos anos 80, os recursos vindos do MEC para os HU’s foram diminuídos, até serem abolidos totalmente em 1990.
A partir daí o Ministério da Saúde (MS) absorveu a assistência médica da previdência. Durante anos criaram-se fórmulas para atender as necessidades dos HU’s, como índices de valorização, Fator de Incentivo ao Desenvolvimento do Ensino e Pesquisa Universitária em Saúde (FIDEPS) baseado nas Autorizações de Internação Hospitalar (AIH’s), o FIDEPS fixo e por último o contrato de gestão com custeio fixo para média complexidade. Assim ao longo dos anos, os HU’s acabaram por concentrarem-se em atividades de alta complexidade e estratégicas, formação de especialistas médicos, pesquisas clínicas integradas ao mercado mundial (seguindo as grandes indústrias farmacêuticas), formação de professores e pesquisadores e desenvolvimento de equipes multiprofissionais.
O relatório desse GT ainda aponta os problemas encontrados nos HU’s: o modelo de gestão constitui uma dificuldade, devido à falta de autonomia e ausência de mecanismos que responsabilizem a instituição por obtenção de resultados; a administração rígida e centralizada do pessoal também é vista como um entrave, pois os mecanismos de contratação, remuneração, avaliação de desempenho, incentivos e demissão são inflexíveis (direitos dos servidores públicos), o que “não assegura condições mínimas de boa governança”; há falta de mecanismos que permitam a definição de metas e resultados; também existe uma diminuição não-oficial da carga horária de 40 para 30h.
Após elencar os problemas dos HU’s, o GT afirma que as melhorias nesses hospitais nos últimos anos são fruto das fundações de apoio inseridas em suas gestões, mas essas fundações geralmente utilizam processos que estão em atrito com o Ministério Público (MP), assim o relatório aponta a criação de fundações estatais de direito privado como a solução mágica para a situação dos HU’s.
Mas o que é uma fundação estatal de direito privado?
A criação da fundação da estatal (FE) é fruto do projeto de um grupo interministerial constituído pela portaria 1642/2006.
A FE é uma modalidade de descentralização administrativa inserida na ordem pública indireta, que pode atuar nas áreas não exclusivas do estado e que não exijam o exercício do poder de autoridade (educação, assistência social, saúde, ciência e tecnologia, meio ambiente, cultura, desporto, turismo, comunicação e previdência complementar de servidores públicos) e não visa fins lucrativos.
Os defensores do projeto alegam que somente as atividades típicas do Estado necessitam de determinadas proteções, como a estabilidade do servidor. E que o exercício de atividades, das quais a iniciativa privada também se ocupa, como a saúde, não necessitam da mesma proteção de fiscalização, regulamentação e controle. O que não é dito por tais defensores é que os serviços privados devem ser complementares aos públicos, e não substitutivos. Ações, por exemplo, na área de saúde, não são exclusivas do estado, mas exigem permanente exercício do poder e autoridade estatal.
A FE vincula-se ao órgão ou entidade em cuja área de competência sua atividade estiver inserida e é fiscalizada por ele. Ela segue o regime mínimo administrativo, ou seja, mantém algumas normas de caráter público para serem aplicadas à entidade.
Para a criação de uma FE é preciso uma lei que a autorize e regulamente.
O orçamento de uma FE não está inserido na União, assim ela fica responsável por todos seus gastos. Mas uma parte dos recursos para o funcionamento da FE vem do contrato de gestão efetuado com o órgão público competente, assim, boa parte do dinheiro tem origem nos cofres públicos. Então, as principais receitas da fundação são de natureza orçamentária e pública, porém sem os controles inerentes ao trâmite orçamentário público, porque a FE não está inserida no Orçamento da União, logo ela fica livre da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF).
A FE também pode adquirir receitas adicionais, através da venda de serviços (que não os prestados ao poder público), aplicação de receitas no mercado financeiro, estabelecimento de convênios ou outras parcerias e pelo recebimento de doações. Nesse ponto fica claro o caráter privatista das FE’s, que utilizam os bens antes públicos para prestar serviços privados.
O regime de contratação segue o dos órgãos públicos somente no que se refere à prestação de concurso, pois os trabalhadores da FE estão submetidos à Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT). Essa ausência de estabilidade é vista pelo governo como uma oportunidade para regularizar contratações, ganhar eficiência e agilidade em relação à contratação, remuneração e demissão dos empregados, mas na verdade o que se faz é criar métodos de gratificação àqueles que mais produzirem e pressionar os trabalhadores através da possibilidade de demissão, incluindo a lógica capitalista até o âmago da FE (a qual não deveria visar lucros, lembram-se?).
Como possuem um caráter social e de prestação de serviços públicos, as FE’s possuem imunidade tributária e por conseguinte não contribuem para a seguridade social. Entretanto se o regime adotado é o CLT (cobertos pelo Regime Geral da Previdência - RGP), o que justifica a não contribuição patronal?
Os bens públicos podem passar para a FE, de acordo com a lei que a regulamenta. Uma vez “pertencentes” à FE, esses bens são passíveis de penhora. Então o que pode acontecer é o governo doar esses bens, eles serem penhorados pela FE e conseqüentemente acontecer uma dilapidação do patrimônio público. Além disso, o projeto menciona que, no caso de todo o patrimônio estar penhorado, a fundação poderá socorrer-se do Governo. Mas não esclarece qual será este “socorro” que a administração pública dará nestes casos.
O ministro da saúde, em recente entrevista afirmou que as FE’s garantem os princípios do SUS. Mas a quais princípios ele se referia? O SUS garante a universalidade. Seria a universalidade garantida com a privatização da saúde? O SUS garante a integralidade e descentralização. Mas elas seriam mantidas num regime hospitalocêntrico? Vale ressaltar que quando se discute o projeto de FE, não são mencionadas unidades de saúde ou qualquer tipo de aproximação da saúde em relação à população. O SUS garante controle social. E onde se encontra esse controle nas FE’s? A direção da FE se dá pelo Conselho Curador (ou administrativo), formado pelos gestores.
A “sociedade civil” tem direito à participação no Conselho Consultivo Social, que é um órgão de caráter consultivo, subordinado diretamente ao Conselho Curador, suas principais funções são informar e orientar o Conselho Curador acerca das expectativas da sociedade com relação à FE. O Conselho Consultivo Social pode eleger um membro para representá-lo no Conselho Curador. Dentro desse “Conselho Consultivo” com certeza não se encaixa o controle social hoje mantido pelo SUS.
Segundo a Dra. Lenir, uma das articuladoras do projeto, em termos de financiamento a FE “é algo inovador, que foge da rigidez das atuais rubricas orçamentárias”. Porém aqui deve ser citado Kyioshi Harada, que afirma: “fugir das amarras da lei, a pretexto de buscar agilidade e eficiência do setor privado, é próprio de governantes não vocacionados para o exercício da função pública, incompetentes e despreparados, para dizer o mínimo.” Verifica-se a cada dia que quanto mais incompetente o governo, maior a busca por princípios e direitos privados, e acaba-se esquecendo que é missão do Estado retirar, coativamente, parcela da riqueza produzida pelo setor privado, para eficiente execução de obras públicas e prestação de serviços públicos.
A exposição de todos esses fatos nos leva a refletir sobre as motivações para apresentação de tal projeto no Congresso. Estariam os governantes empenhados em tentar melhorar a gestão pública no país? Ou estariam “seguindo” ordens?
Um fato pouco comentado pelos governistas é a existência de certo documento do Banco Mundial, que analisa a organização da saúde pública no Brasil.
Esse documento aponta os “problemas” da saúde no país. Coincidentemente os problemas apontados são os mesmos presentes no relatório do GT sobre HU’s e no projeto de implementação das FE’s. O documento ainda apresenta seis pontos corretivos para a saúde pública brasileira, os quais o Banco Mundial enfatiza que devem ser implementados em conjunto, e nunca isolados:
1. O gestor deve ter maior autonomia em relação aos recursos;
2. Deve haver mecanismos que façam o gestor se focar em objetivos precisos e resultados mensuráveis, como contratos de gestão;
3. Sincronizar e alienar o processo de planejar, administrar e gerir a informação, e orientá-los;
4. Consolidar as transferências federais e adicionar incrementos financeiros para melhoras no desempenho profissional;
5. Estabelecer sistemas cujos objetivos sejam melhorar o desempenho organizacional;
6. Consolidar e profissionalizar a capacidade gestora.
Esses pontos “corretivos” são familiares, não é? Eles são um ótimo resumo do projeto das Fundações Estatais! Em nenhum dos dois fala-se em maiores investimentos na saúde, em atendimento realmente universal ou participação social.
Analisando o relatório do GT, a proposta de projeto de lei e o documento do BM, percebemos que estão todos interligados.
O GT não foi formado para levantar os problemas dos HU’s e sugerir mudanças, ele foi usado para justificar a implementação do projeto das Fundações Estatais. Por sua vez, o projeto não buscou mudanças profundas na saúde, tratou os problemas apenas como de ordem do tipo de gestão aplicada, assim como o documento do BM sugere.
- O CNS se posiciona contrariamente ao projeto das FE’s;
- O CNS ainda não se posiciona a respeito do projeto das FE’s e espera ser devidamente apresentado e discutido.
A primeira proposta ganhou por seis votos.
Entretanto, desconsiderando totalmente o posicionamento do CNS, o governo apresentou ao Congresso no último dia 11 o Projeto de Lei Complementar que regulamenta as Fundações Estatais de Direito Privado.
Cabe a nós agora o dever de se fazer recordar a diferença entre público e privado, ou, como disse K. Harada, “chegará um dia em que o dinheiro público será confundido com o dinheiro privado, direta ou indiretamente. É preciso que as normas de direito público e o regime de direito público voltem a ser observados com rigor pelas autoridades dos três Poderes”.
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