sexta-feira, agosto 03, 2007

Fundações Estatais

Muito se tem comentado sobre fundações estatais de direito privado nos últimos dias. Textos, reportagens, análises das mais variadas chegam dia-a-dia nos mais variados meios de comunicação. Mas onde surgiu esse projeto? O que ele propõe? Quais são os prós e contras? Como ele interfere nas universidades públicas?

Toda história tem um começo. Talvez a história desse projeto tenha três ou mais pontos de partida...

No final de 2006, o governo emitiu uma portaria criando um grupo de trabalho (GT) para analisar a situação dos hospitais universitários no país. O relatório final desse GT conta um pouco da história dos Hospitais Universitários (HU’s), que foram criados ou federalizados em sua maior parte entre os anos 40 e 70, porque as casas filantrópicas (as Santas Casas, Casas de Misericórdia, etc.) já não suportavam a formação especializada e não tinham investimentos de porte.

Segundo esse relatório, até os anos 70, os recursos para os HU’s vinham das Instituições Federais de Ensino Superior (IFES), mas as dificuldades econômicas do Brasil e as crescentes demandas levaram à criação de convênios com o antigo INAMPS – apenas previdenciários eram atendidos – mediados por fundações de apoio.

Essas fundações de apoio são instituições de direito privado, sem fins lucrativos, destinadas a apoiar projetos de ensino, pesquisa e extensão e desenvolvimento institucional e podem ser contratadas sem licitação. Em alguns casos chegou-se a adotar o atendimento de planos de saúde nos HU’s, para obtenção de mais recursos. Ainda de acordo com o relatório do GT, a partir dos anos 80, os recursos vindos do MEC para os HU’s foram diminuídos, até serem abolidos totalmente em 1990.

A partir daí o Ministério da Saúde (MS) absorveu a assistência médica da previdência. Durante anos criaram-se fórmulas para atender as necessidades dos HU’s, como índices de valorização, Fator de Incentivo ao Desenvolvimento do Ensino e Pesquisa Universitária em Saúde (FIDEPS) baseado nas Autorizações de Internação Hospitalar (AIH’s), o FIDEPS fixo e por último o contrato de gestão com custeio fixo para média complexidade. Assim ao longo dos anos, os HU’s acabaram por concentrarem-se em atividades de alta complexidade e estratégicas, formação de especialistas médicos, pesquisas clínicas integradas ao mercado mundial (seguindo as grandes indústrias farmacêuticas), formação de professores e pesquisadores e desenvolvimento de equipes multiprofissionais.

O relatório desse GT ainda aponta os problemas encontrados nos HU’s: o modelo de gestão constitui uma dificuldade, devido à falta de autonomia e ausência de mecanismos que responsabilizem a instituição por obtenção de resultados; a administração rígida e centralizada do pessoal também é vista como um entrave, pois os mecanismos de contratação, remuneração, avaliação de desempenho, incentivos e demissão são inflexíveis (direitos dos servidores públicos), o que “não assegura condições mínimas de boa governança”; há falta de mecanismos que permitam a definição de metas e resultados; também existe uma diminuição não-oficial da carga horária de 40 para 30h.

Após elencar os problemas dos HU’s, o GT afirma que as melhorias nesses hospitais nos últimos anos são fruto das fundações de apoio inseridas em suas gestões, mas essas fundações geralmente utilizam processos que estão em atrito com o Ministério Público (MP), assim o relatório aponta a criação de fundações estatais de direito privado como a solução mágica para a situação dos HU’s.

Mas o que é uma fundação estatal de direito privado?

A criação da fundação da estatal (FE) é fruto do projeto de um grupo interministerial constituído pela portaria 1642/2006.

A FE é uma modalidade de descentralização administrativa inserida na ordem pública indireta, que pode atuar nas áreas não exclusivas do estado e que não exijam o exercício do poder de autoridade (educação, assistência social, saúde, ciência e tecnologia, meio ambiente, cultura, desporto, turismo, comunicação e previdência complementar de servidores públicos) e não visa fins lucrativos.

Os defensores do projeto alegam que somente as atividades típicas do Estado necessitam de determinadas proteções, como a estabilidade do servidor. E que o exercício de atividades, das quais a iniciativa privada também se ocupa, como a saúde, não necessitam da mesma proteção de fiscalização, regulamentação e controle. O que não é dito por tais defensores é que os serviços privados devem ser complementares aos públicos, e não substitutivos. Ações, por exemplo, na área de saúde, não são exclusivas do estado, mas exigem permanente exercício do poder e autoridade estatal.

A FE vincula-se ao órgão ou entidade em cuja área de competência sua atividade estiver inserida e é fiscalizada por ele. Ela segue o regime mínimo administrativo, ou seja, mantém algumas normas de caráter público para serem aplicadas à entidade.

Para a criação de uma FE é preciso uma lei que a autorize e regulamente.

O orçamento de uma FE não está inserido na União, assim ela fica responsável por todos seus gastos. Mas uma parte dos recursos para o funcionamento da FE vem do contrato de gestão efetuado com o órgão público competente, assim, boa parte do dinheiro tem origem nos cofres públicos. Então, as principais receitas da fundação são de natureza orçamentária e pública, porém sem os controles inerentes ao trâmite orçamentário público, porque a FE não está inserida no Orçamento da União, logo ela fica livre da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF).

A FE também pode adquirir receitas adicionais, através da venda de serviços (que não os prestados ao poder público), aplicação de receitas no mercado financeiro, estabelecimento de convênios ou outras parcerias e pelo recebimento de doações. Nesse ponto fica claro o caráter privatista das FE’s, que utilizam os bens antes públicos para prestar serviços privados.

O regime de contratação segue o dos órgãos públicos somente no que se refere à prestação de concurso, pois os trabalhadores da FE estão submetidos à Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT). Essa ausência de estabilidade é vista pelo governo como uma oportunidade para regularizar contratações, ganhar eficiência e agilidade em relação à contratação, remuneração e demissão dos empregados, mas na verdade o que se faz é criar métodos de gratificação àqueles que mais produzirem e pressionar os trabalhadores através da possibilidade de demissão, incluindo a lógica capitalista até o âmago da FE (a qual não deveria visar lucros, lembram-se?).

Como possuem um caráter social e de prestação de serviços públicos, as FE’s possuem imunidade tributária e por conseguinte não contribuem para a seguridade social. Entretanto se o regime adotado é o CLT (cobertos pelo Regime Geral da Previdência - RGP), o que justifica a não contribuição patronal?

Os bens públicos podem passar para a FE, de acordo com a lei que a regulamenta. Uma vez “pertencentes” à FE, esses bens são passíveis de penhora. Então o que pode acontecer é o governo doar esses bens, eles serem penhorados pela FE e conseqüentemente acontecer uma dilapidação do patrimônio público. Além disso, o projeto menciona que, no caso de todo o patrimônio estar penhorado, a fundação poderá socorrer-se do Governo. Mas não esclarece qual será este “socorro” que a administração pública dará nestes casos.

O ministro da saúde, em recente entrevista afirmou que as FE’s garantem os princípios do SUS. Mas a quais princípios ele se referia? O SUS garante a universalidade. Seria a universalidade garantida com a privatização da saúde? O SUS garante a integralidade e descentralização. Mas elas seriam mantidas num regime hospitalocêntrico? Vale ressaltar que quando se discute o projeto de FE, não são mencionadas unidades de saúde ou qualquer tipo de aproximação da saúde em relação à população. O SUS garante controle social. E onde se encontra esse controle nas FE’s? A direção da FE se dá pelo Conselho Curador (ou administrativo), formado pelos gestores.

A “sociedade civil” tem direito à participação no Conselho Consultivo Social, que é um órgão de caráter consultivo, subordinado diretamente ao Conselho Curador, suas principais funções são informar e orientar o Conselho Curador acerca das expectativas da sociedade com relação à FE. O Conselho Consultivo Social pode eleger um membro para representá-lo no Conselho Curador. Dentro desse “Conselho Consultivo” com certeza não se encaixa o controle social hoje mantido pelo SUS.

Segundo a Dra. Lenir, uma das articuladoras do projeto, em termos de financiamento a FE “é algo inovador, que foge da rigidez das atuais rubricas orçamentárias”. Porém aqui deve ser citado Kyioshi Harada, que afirma: “fugir das amarras da lei, a pretexto de buscar agilidade e eficiência do setor privado, é próprio de governantes não vocacionados para o exercício da função pública, incompetentes e despreparados, para dizer o mínimo.” Verifica-se a cada dia que quanto mais incompetente o governo, maior a busca por princípios e direitos privados, e acaba-se esquecendo que é missão do Estado retirar, coativamente, parcela da riqueza produzida pelo setor privado, para eficiente execução de obras públicas e prestação de serviços públicos.

A exposição de todos esses fatos nos leva a refletir sobre as motivações para apresentação de tal projeto no Congresso. Estariam os governantes empenhados em tentar melhorar a gestão pública no país? Ou estariam “seguindo” ordens?

Um fato pouco comentado pelos governistas é a existência de certo documento do Banco Mundial, que analisa a organização da saúde pública no Brasil.

Esse documento aponta os “problemas” da saúde no país. Coincidentemente os problemas apontados são os mesmos presentes no relatório do GT sobre HU’s e no projeto de implementação das FE’s. O documento ainda apresenta seis pontos corretivos para a saúde pública brasileira, os quais o Banco Mundial enfatiza que devem ser implementados em conjunto, e nunca isolados:

1. O gestor deve ter maior autonomia em relação aos recursos;

2. Deve haver mecanismos que façam o gestor se focar em objetivos precisos e resultados mensuráveis, como contratos de gestão;

3. Sincronizar e alienar o processo de planejar, administrar e gerir a informação, e orientá-los;

4. Consolidar as transferências federais e adicionar incrementos financeiros para melhoras no desempenho profissional;

5. Estabelecer sistemas cujos objetivos sejam melhorar o desempenho organizacional;

6. Consolidar e profissionalizar a capacidade gestora.

Esses pontos “corretivos” são familiares, não é? Eles são um ótimo resumo do projeto das Fundações Estatais! Em nenhum dos dois fala-se em maiores investimentos na saúde, em atendimento realmente universal ou participação social.

Analisando o relatório do GT, a proposta de projeto de lei e o documento do BM, percebemos que estão todos interligados.

O GT não foi formado para levantar os problemas dos HU’s e sugerir mudanças, ele foi usado para justificar a implementação do projeto das Fundações Estatais. Por sua vez, o projeto não buscou mudanças profundas na saúde, tratou os problemas apenas como de ordem do tipo de gestão aplicada, assim como o documento do BM sugere.

Entre os dias 12 e 14 de junho foi realizado o Conselho Nacional de Saúde (CNS), onde aconteceu um debate sobre as FE’s e duas propostas foram encaminhadas para votação:

- O CNS se posiciona contrariamente ao projeto das FE’s;

- O CNS ainda não se posiciona a respeito do projeto das FE’s e espera ser devidamente apresentado e discutido.

A primeira proposta ganhou por seis votos.

Entretanto, desconsiderando totalmente o posicionamento do CNS, o governo apresentou ao Congresso no último dia 11 o Projeto de Lei Complementar que regulamenta as Fundações Estatais de Direito Privado.

Cabe a nós agora o dever de se fazer recordar a diferença entre público e privado, ou, como disse K. Harada, “chegará um dia em que o dinheiro público será confundido com o dinheiro privado, direta ou indiretamente. É preciso que as normas de direito público e o regime de direito público voltem a ser observados com rigor pelas autoridades dos três Poderes”.